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"Um Deus Passeando Pela Brisa da Tarde" de Mário de Carvalho

Mário de Carvalho nasceu em Lisboa, em 1944. Licenciou-se em Direito, em 1969. O serviço militar foi interrompido por prisão em Caxias e, posteriormente, em Peniche, por actividade política contra a ditadura, ainda nos tempos de estudante. Mais tarde exilou-se em França e na Suécia. Regressa após o 25 de Abril de 1974. Dominando soberbamente a língua, o estilo de Mário de Carvalho não se reconhece em nenhuma escola, e o seu registo é ao mesmo tempo de uma grande modernidade. A crítica aponta-o unanimemente como um dos mestres do romance português contemporâneo. Vários dos seus livros foram traduzidos no estrangeiro: A Paixão do Conde de Fróis, Os Alferes, Era Bom que Trocássemos umas Ideias sobre o Assunto, Um Deus Passeando Pela Brisa da Tarde.

"Um Deus Passeando Pela Brisa da Tarde"

1995 - Grande Prémio APE
1996 - Prémio Pégaso de Literatura
1996 - Prémio Fernando Namora

Sinopse
Lusitânia, séc. III d.C. Neste romance, talvez o mais importante de Mário de Carvalho, tudo se passa numa cidade da Lusitânea, Tarcisis, no momento em que Império Romano começa a soçobrar, devastado por factores internos e externos, as invasões bárbaras e a cristianização. E é num ambiente de decadência que todo o romance se desenrola. Apanhado na vertigem dos acontecimentos e rodeado de sinais que escapam ao seu entendimento, Lúcio Valério, o magistrado supremo é espoliado e perde todo o seu poder. Mário de Carvalho avisa-nos, no começo do romance: "...Tarcisis nunca existiu...", no entanto, devemos estar atentos, sobretudo os detentores do poder, aos sinais dos tempos, para percebermos o que nos acontece.

Entrevista a Mário de Carvalho

As promessas por cumprir
Mário de Carvalho habituou-nos a uma escrita rigorosa, cheia de ironias, onde parece entrever-se pessimismo, desencanto. Mas descobrimos que este ex-comunista tem, afinal, muita confiança no futuro.

Pedro Dias de Almeida - 06 Mar 2008, VISÃO

Uma lagoa – a lagoa Moura – como lugar (personagem?) central. Um protagonista chamado Gustavo – realizador de cinema a ensaiar, amparado pela irmã, um balanço da sua vida –, dono do olhar com que tudo nos é contado. Uma pistola pousada em cima de uma escrivaninha, que se torna símbolo do «mistério» de Maria Alfreda, personagem que chegará a ser fantasma. É assim A Sala Magenta, o novo romance de Mário de Carvalho, que não publicava desde 2003.
Aqui se fala de cinema, sacrifícios humanos, apartheid sobre as mulheres, leituras, trevas e Luzes. Ao falarmos de tudo isto, acabámos por falar do(s) tema(s) deste romance. A conversa serpenteou na penumbra de um escritório lisboeta onde o escritor, 63 anos, já não exerce advocacia.
De onde vem a sua aproximação ao cinema?
Recordo-me de acabarem as aulas no Liceu de Gil Vicente, à tarde, e parte da minha turma do liceu ir a correr desvairadamente para o cinema Royal, que ficava ali na Graça. Íamos ver uma sessão dupla, estava-se ali a tarde toda. Eu sou formado pelo cinema, desde novo. O meu imaginário tem que ver com o cinema. Provavelmente, sonho já com enquadramentos.
Quando pensa nessa formação, ocorre-lhe o cinema clássico americano, o italiano, que filmes?
Fui formado pelo cinema, pela banda desenhado, por um certo tipo de leituras… Desses tempos, dessas sessões tumultuosas, lembro-me sobretudo dos westerns, de filmes de gangsters... Na altura, a rapaziada entusiasmava-se, ria, comentava o filme, intervinha… O cinema, digamos, faz parte da minha criação. Mas devo dizer que não sou um cinéfilo. Não sou um beato do cinema, que não pensa noutra coisa e tem na cabeça um catálogo de filmes e realizadores. Não sou beato disso, nem de coisa nenhuma. Da literatura também não.
Lembra-se do primeiro filme que viu?
Os psicólogos e psiquiatras dizem que não é possível termos memórias anteriores aos três anos. Mas, quer queiram, quer não, acontece que eu tenho. E uma dessas memórias é a de um cinema de Setúbal. Estava com os meus pais. Lembro-me que alguém atirava uma corda para um galho de uma árvore, provavelmente para enforcar alguém, e havia uma roda de uma carruagem que andava ao contrário, aquele efeito do cinema em que as rodas desandam. Lembro-me perfeitamente de ter ficado intrigado com a roda a andar ao contrário... Guardava esta imagem comigo, e mais tarde reconheci-a, voltei a ver esse filme, mas não me recordo qual era.
E não se imagina sentado na cadeira do realizador?
Não, de forma nenhuma. Tenho a consciência dos meus limites. Assim como sei que poucos realizadores conseguem escrever o argumento, ou a música de um filme, também eu não conseguiria organizar as imagens de forma artisticamente relevante, montá-las, encontrar o ritmo adequado… Há certos dons, creio eu, que nascem com as pessoas. O ser capaz de encontrar o ângulo para uma imagem, é um dom. E eu não o tenho. Visualizo tudo, mas o pôr em prática, o ser capaz de dispor as coisas para conseguir esse resultado… Não tenho o menor jeito para fotografar, nem para filmar. A minha intervenção vai até ao plateau, mas não entra lá. Quando muito faço o argumento, o resto é para os outros. O cinema é uma arte coral, o bom realizador é aquele que se rodeia de tipos melhores que ele, cada qual com funções diferentes. Isto vai de par com uma grande desconfiança minha em relação a uma insistência na noção autoral do cinema. Há decerto uma condução do filme, há sem dúvida alguém a quem o filme deve ser atribuído, mas isso não implica que não haja contribuições valiosíssimas de outros – da música, do argumento, da direcção de fotografia, e por aí fora… – que marcam profundamente o resultado final. Um dos talentos que se exige a um realizador é saber coordenar essas competências todas. E não escrever na película como quem escreve uma folha, equiparado a um escritor… Isso foi uma ideia que foi lançada e carregada pela Nouvelle Vague, que tem o seu lugar na história das ideias e das discussões sobre cinema, mas que está hoje ultrapassada, desacreditada… Até pela quantidade de epígonos que gerou.
Mesmo que não se deva fazer uma leitura literal do seu livro, fica a ideia de um cinema português que nunca se cumpriu, personificado no Gustavo, em coisas que ele diz… Concorda que há um certo cinema português que nunca chegou a dar aquilo que prometeu?
Se sublinhar essa expressão, 'um certo', está certo... Não digo que não haja um ou outro realizador que fique… Mas o facto é que não temos um cinema de primeira linha, não temos um teatro de primeira linha, não sei se temos uma literatura de primeira linha…, não temos uma ciência de primeira linha. Estatisticamente aparecem umas figuras, de vez em quando, que têm uma grande importância, uma grande projecção, ultrapassam até os limites nacionais. Mas depois não há nada que acompanhe e sustente isso. Não há espessura. Não há escolas, naquele velho sentido de tradição, uma experiência que se entrega e vai passando de geração em geração. Não há uma escola de argumentistas em Portugal, nunca houve. E parece que, de cada vez que se faz um filme, as pessoas estão a inventar o cinema de novo.
Aquilo a que se chamou Cinema Novo chegou a existir como escola?
Agora até há um Novo Cinema Novo, não é? Como muitas coisas em Portugal, chegou a existir enquanto esperança, enquanto promessa, mas temos os resultados à vista. Não há possibilidade de remover o que está feito. A obra está à vista, avalie-se. Mas a minha personagem não é decalcada do real, não pretende demonstrar nem exibir coisíssima nenhuma, nem adoptar um ângulo sobre o cinema português. Trata-se de uma personagem que poderia existir, é plausível… Há uma ligação à realidade, mas não é uma cópia da realidade. Quem for procurar aquele realizador aí pelas ruas, não o encontra.
Concorda, portanto, que até agora o cinema português, nomeadamente o Cinema Novo, prometeu mais do que deu…
Acontece muitas vezes em Portugal. A própria Revolução do 25 de Abril prometeu mais do que deu [risos]. Estamos a aproximar-nos do tema do meu livro. Há vários temas, mas um deles é esse: a inconclusão. Nada acaba por se cumprir. A promessa de vida daquela personagem, do Gustavo, e a esperança que ele chegou a ter, envolvido no seu meio boémio, estava convencido de que valia alguma coisa…. E depois, a partir de certa altura, quando faz um balanço da sua vida, bem ponderado, a sós, percebe que falhou. Mesmo as coroas de glória, as participações nos festivais (com nomes que me deram algum trabalho a inventar…), acabaram por soçobrar, e ele teve a consciência disso… Um dos principais temas do livro, tem muito que ver, então, com essa inconclusão, irresolução, insatisfação. Tem a ver com o ficar sempre muito aquém, e isso vê-se nas relações dele com as mulheres. Há qualquer coisa – um equilíbrio, se quisermos – que nunca se consegue atingir. Um desencontro permanente.
Como professor na Escola de Cinema teve uma perspectiva privilegiada sobre o que a nova geração está a fazer? Há grandes mudanças no cinema português?
Continua a ser uma coisa de indivíduos, de talentos individuais. Mas é preciso dizer que tem havido um esforço tremendo. A nível das escolas de cinema, do Estado… Há um movimento interessante ao nível das curtas-metragens, aí há um meio a borbulhar, a funcionar, aparece muita gente interessada… No que toca à longa metragem não mudou assim tanto, apesar dos muitos esforços que se têm feito, e apesar de haver um ambiente diferente do que a minha personagem teria encontrado, que era completamente amadorístico, pessoas que não tinham a menor ideia de como se construía um guião, do que é estruturar uma narrativa, estavam logo disposto a fazer um filme, e a filmar! [risos] Consideravam-se, por vezes tão geniais, que nem precisavam de guiões, chegavam ao plateau e decidiam onde é que se punha a câmara, o que iam filmar… Os resultados estão à vista. E penso que neste momento ainda não temos uma série de valores consolidados. Mesmo que apareça um ou outro nome com impacto, que nos dá esperanças, não há uma segunda linha, uma terceira linha, uma quarta linha… Se pensarmos por exemplo na pintura holandesa do século XVI, ou nos mestres italianos, conhecemos meia dúzia de nomes, mas depois há outros, e outros, e outros, muitos bons também… Aqui em Portugal não há isso. Há um excesso de génios, e atropelam-se uns aos outros! [risos] Isso dá mau resultado, esse excesso de genialidade é capaz de ser um bocadinho inibidor.
Como é a sua relação quotidiana com o cinema? Vai muito às salas ou prefere o DVD?
Vou pouco ao cinema. Tenho horror ao cheiro do milho frito, fico irritado ao ouvir as pessoas a tasquinhar pipocas ao meu lado… E estou a preferir ver filmes em casa. Mas aquelas imagens não foram concebidas para serem vistas em pequeno ecrã. Perco um bocado com isso. Mas ganho com a possibilidade de voltar atrás, parar, rever, ver várias vezes seguidas… Ganho com a capacidade de manipular. É das boas características dos tempos de hoje. Muitos dos realizadores de agora, são formados assim, a ver e a rever… Coisa que antes não podíamos fazer.
O último filme que vi em sala foi o Woody Allen. Habitualmente não perco um Woody Allen, acho que é um dos grandes génios do cinema de hoje. Há ali um grande engenho, em ter as ideias e saber pô-las em prática.
E a sua relação com os livros, como é? É um leitor compulsivo, disciplinado, salta de uns livros para outros?
Sou um leitor, como sempre fui, completamente eclético, anárquico, capaz de deixar, muitas vezes, um livro a meio, e depois voltar a pegar-lhe… Capaz de debicar, aqui e além. Não tenho a preocupação de estar à moda, pelo contrário. Se tenho algum pedantismo é o de nunca ler o que toda a gente está a ler, quase faço questão nisso. Mas também não tenho muitos mais… E estou numa idade já, em que releio muito.
Não gosta de procurar coisas novas, descobrir? Prefere voltar ao que já sabe que é seguro?
Naqueles livros que são lidos e relidos, quando são de grandes autores, estamos sempre a encontrar novidades. Parece um lugar comum, mas eu posso exemplificar no concreto. Aconteceu-me recentemente com o Madame Bovary, e também com um outro romance que tinha lido na adolescência. Que é estar a visualizar o que eu tinha imaginado na altura, e ao lado, como num ecrã dividido, o que estou a visualizar agora. É interessante ver, comparar, como o livro se projectava em determinada altura, e como o faz agora. E descubro coisas… Agarro, por exemplo, n'Os Maias muitas vezes, n’O Retrato de Ricardina, de Camilo. Também vou muitas vezes ao Aquilino Ribeiro. É um bocado para me assegurar de que houve píncaros muito altos a que a nossa literatura chegou. O tratamento da língua naqueles autores é muito estimulante, mostra que se pode ir, de facto, muito longe.
Nessa leitura anárquica e indisciplinada há alguma descoberta recente que valha a pena partilhar?
Nestas coisas não corro a foguetes, não sou influenciável. Exige que eu leia e que eu decida. Posso enganar-me completamente, mas é a minha leitura. Há pouco tempo gostei muito de ler Phillip Roth, e um conto de Ian McEwan, que por acaso até é um autor da moda…
E na escrita? Também é anárquico e indisciplinado? Gosta de escrever no escritório, em casa?
Não, escrevo em casa e só de madrugada. Só consigo escrever a partir das duas da manhã… Este livro foi escrito como se estivesse a acumular, a carregar, coisas durante o dia e depois as descarregasse às duas da madrugada. Preciso de silêncio absoluto, tenho quase medo de me sentar para escrever e, ao fim de quatro minutos, ser interrompido…
E reescreve muito? Por exemplo em A Sala Magenta…
Sim, reescrevo muito. A Sala Magenta foi muito reescrito, ponderado palavra a palavra. A ponto de eu não saber se não teria sido demasiado reescrito. Porque a partir de certa altura começa a haver esta dúvida: será que a primeira fórmula não era mesmo a melhor, depois de termos experimentado todas… O livro foi sendo estruturado à medida que ia sendo escrito. Sabendo que há certos processos que não são conscientes. A minha experiência já me diz para ter alguma confiança nisso. Mas a escrita acaba por ser muito policiada. Vou muitas vezes ao dicionário, e isto não quer dizer que eu use palavras difíceis, que a minha linguagem seja difícil… Não é. Mas procuro que cada palavra esteja carregada, procuro o equivalente que melhor exprima, mais intensamente, com maior carga, o que quero dizer. Não excluo a possibilidade de, um dia, escrever apenas com o vocabulário básico e elementar, até pode ser uma experiência interessante; mas, simplesmente, se o fizer não será por ignorância, é por opção [risos]. A língua tem, de facto, potencialidades espantosas.
Portanto, quando escreveu a primeira linha d'A Sala Magenta, não tinha na cabeça o guião todo, até ao fim…
Não, apenas umas linhas… As personagens, claro, alguns conflitos que já estão definidos, o ambiente também. Há um fil rouge ainda ténue, um bocado esbatido. Às vezes já sei qual é o final, mas há muita coisa que vai vindo à tona enquanto escrevo…
Os seus últimos livros são percorridos por uma grande ironia em relação a certas personagens. Neste, não há tanto a ironia mas mais um desencanto… Não tem a espécie humana em muito boa conta, pois não?
A espécie humana? Se compararmos com outras, até me parece que não estamos assim muito mal [risos]… Vamos lá a ver: nós já não aceitamos o canibalismo. Já não fazemos o sacrifício humano – os romanos ainda faziam… Nós já não admitimos sequer essa ideia. Ainda há pouco mais de cem anos, dizia-se que o abolicionismo era antieconómico, e era absolutamente legítimo argumentar isso, a palavra abolicionista até era pejorativa. Hoje não há escravatura, ou pelo menos não há ninguém que a confesse e a defenda. É um progresso. Já não nos devoramos uns aos outros, não fazemos sacrifícios humanos… Portanto, isto não está mau. Podia estar pior. Aí tem uma apreciação sobre a espécie humana.
Uma pessoa com profundas convicções comunistas, não tem que ter uma fé muito grande no Homem, na humanidade?
A fé, aí, significa confiança… Mas não era tanto confiança na humanidade inteira, era a confiança na classe operária. A fórmula usada quando eu tinha um activismo político mais intenso era essa. Confiança na classe operária e às vezes, com uma derivação: a confiança nas massas. Expressão com que embirro um bocado e sempre embirrei. Era mais isso. Sim, eu tenho confiança no futuro. Há-de haver um dia, provavelmente, em que, assim como abandonámos a escravatura e o canibalismo, consideraremos a morte obscena, e a humilhação do outro obscena. Mas isto ainda está para durar… Pelo que estamos a ver à volta, pelo fervilhar de guerras, de situações que continuam a existir, como o apartheid… Há países em que se pratica o apartheid sobre as mulheres, isto tem que ser dito. Já se correm-se riscos por dizê-lo, mas é a verdade, há uma parte do mundo em que se pratica o apartheid, perante a complacência e a distracção de uma outra parte do mundo, que não encara o fenómeno na sua dimensão real. E eu tenho esperança de que estas coisas sejam removidas, que o uso da violência para fazer impor o poder acabe por ser tão obscena como são hoje os sacrifícios humanos, por exemplo…
Essa confiança no futuro mostra um grande optimismo que não costuma revelar...
Grande, acha? Tenho algumas razões para crer nisto. A Idade Média foi ultrapassada, aqui na Europa, conseguimos ultrapassá-la… E o Iluminismo preponderou, dos salões franceses irradiou a filosofia das Luzes. E hoje, já não somos tratados a pontapé aí na rua pelos lacaios de um qualquer senhor… Tivemos a Revolução Francesa. Há quem queira regredir, voltar para trás, e fazer soçobrar todos os valores alcançados no Iluminismo, mas o facto é que aqui chegámos. E provavelmente é preciso fazer, noutros lados do mundo, esta Revolução – falo da revolução das mentalidades, e dos espíritos… Enfim, esperemos que, por todo o lado, os valores do Iluminismo sejam enfim retomados. Costumo falar dos valores do humanismo, e devo dizer que não são, necessariamente, os valores do marxismo-leninismo… E devo dizer que as minhas fortes convicções comunistas nunca foram muito ortodoxas, depois do 25 de Abril. Dei provas públicas disso. E, aliás, já não pertenço ao partido há sete anos… Houve razões para isso.
Ainda há comunistas?
[Pausa] Acho que sim, era mau que não houvesse. Era mau que em Portugal não houvesse um Partido Comunista com uma presença forte. E há zonas do mundo em que a falta dessa voz em determinado momento ainda se faz sentir. Se a América não tem um serviço nacional de saúde, é porque em determinada altura o partido comunista foi ali completamente reprimido, se há certo tipo de manifestações artísticas que não se praticaram, certos livros que não se escreveram, certas estruturas que não foram criadas, e um certo terceiro-mundismo que continua, apesar de tudo, naquele país, é porque houve ali qualquer coisa que, a certa altura, foi castrada. Fez falta, ali, aquela voz…
Mesmo não sendo maioritária.
Especialmente não sendo maioritária! [risos]
O que é que o angustia, ou assusta, quando pensa no tempos dos filhos e netos dos seus netos?
Não sabemos o que vem aí, não. Isto é completamente opaco. Quando eu era jovem, quando tinha 20 anos, a 2ª Guerra Mundial tinha sido há pouco tempo e parecia distante, distante… O facto de haver agora um vilão internacional nomeado – o tal Bin Laden – é qualquer coisa que me parece romanesca, e própria dos romances populares do princípio do século (Fatômas, o imperador Ming!, um vilão que se nomeia). Eu nunca pensei chegar assim ao século XXI, o ano 2000 era assim para nós uma meta luminosa, e quase de ficção científica… Esta ideia de que os nossos filhos podem ter uma vida pior do que a nossa, é uma coisa nova. A ideia de que as gerações não tendem a progredir. Os meus pais não eram licenciados, eu sim, as minhas filhas também, mas os meus netos, vamos lá a ver, já não há assim nenhumas garantias de que as coisas tendem sempre a melhorar, e a progredir... E o mundo está a sofrer transformações vertiginosas. Por exemplo, a Internet, ninguém previu a Internet. Um sítio utópico, que não existe, não ocupa espaço, em que está tudo, a possibilidade de comunicar instantaneamente com um neozelandês... Se pensarmos nalguns desenvolvimentos que pode haver a nível da biologia, e dos híbridos, estou certo que, em muitas coisas, o que vai acontecer é hoje inimaginável por nós. Já cá não estarei… É uma incógnita… Estes cinco mil anos não são suficientes para compreendermos, para fazermos previsões. Mas chegámos até aqui porque, a pouco e pouco vamos vencendo o terror e o horror, com a possibilidade de ele sempre regressar, é verdade, de ele se manifestar por todo o lado… E, se quer que lhe diga, penso que a grande diferença entre a esquerda e a direita está nisto: ou nos conformamos com o terror, o horror, a miséria, a humilhação, a guerra, ou achamos que temos que dar sempre mais um passo. E temos feito isso até agora, com recuos, com súbitas quedas…Há um provérbio chinês, sobre a verdade, que diz: «Mesmo que não consigas alcançá-la, nunca a percas de vista».
Há esperança, portanto.
Sim. Aqui há muitos anos escrevi um artigo sobre os «amanhãs que cantam», e dizia, mas o que é querem que os amanhãs fizessem, que grunhissem? Vive-se hoje muitíssimo melhor do que na Idade Média. Mas nem é preciso recuar tanto… Se compararmos os tempos de hoje com tempos que eu vivi, há uma diferença abissal. Chegar a uma vila, a terra dos meus pais, e haver um único carro, o carro do médico. Iam imensos moços a correr atrás do carro, que era uma novidade, rotos, descalços. Os brinquedos eram como vemos agora em África, coisas de arame, que os miúdos fazem… Havia fome, miséria. E não foi há muito tempo. Eu assisti a uma transformação no País perfeitamente espectacular. Podemos dizer que a nossa vida hoje não tem nada a ver com aquele quotidiano triste, e vil, dos anos 50, 60… Agora, o nosso problema, não é a comparação com o que éramos, com o nosso passado, é a comparação com os outros, e aí, de facto, há uma falha que me perturba e incomoda. Porque é que neste país nunca se cumpre um contrato? Porque é que os recursos foram abocanhados por um grupo de interesses, com corrupção?
Voltamos, então, a um dos temas do livro, as tais promessas por cumprir, colectivas ou individuais…
Sim, aquilo que se perdeu e nunca mais na vida se pode recuperar, não é? Se calhar estas são preocupações que emergem com as mais diversas formas e fórmulas…
A literatura também é isso.
Quer nós queiramos quer não, não podemos deixar de ser homens do nosso tempo… Neste livro é procurado um ritmo sereno, com uma frase larga e espaçada. Sempre o mesmo ponto de vista, pelos olhos da mesma personagem, o Gustavo. Não há sinais de diálogo, eles aparecem inseridos dentro do texto. Isto também tem que ver com o ambiente, e com aquela lagoa, a floresta mediterrânica, bonita, aprazível aparentemente, mas que à noite toma contornos sinistros. A própria lagoa pode funcionar à noite como um abismo negro.
Parece que quer continuar a frequentar a lagoa Moura nos próximos livros… É verdade?
Eu defendo-me muito de assumir compromissos… Mas a lagoa Moura… Há várias personagens por ali, e talvez valesse a pena ir espreitar… Quem é aquele Fahrid, como é que foi ali parar, e aquele jovem que aparece com um MP3, vestido muito à vontade, e o marinheiro que chega, e aquela viúva?… Há ali um universo, mas por enquanto… começámos.
Já colocou ali essas personagens a pensar numa continuação?
Sim, de certa maneira. Mas não tomo nenhum compromisso. Se alguma delas se manifestar, talvez a faça descer, como nas mesas do espiritismo [risos].