Escolhas de Jorge Mourinha, Luís Miguel Oliveira, Mário Jorge Torres e Vasco Câmara
Este ano sentámo-nos à mesa de uma família francesa -francoárabes, proletários dos arredores de Marselha (mas também há russos), enfim, uma família com os condimentos de hoje. E a refeição foi memorável.Através da barriga, diz-se, chega-se mais depressa ao coração, e o adágio serve a "O Segredo do Cuscuz". A refeição foi espectáculo para todos: as fronteiras entre "cinema de autor" e "cinema popular" explodiram. Foram dinamitadas pela mão de um cineasta nascido em Túnis em 1960 e seis anos depois já a viver em Nice, França, para onde o pai emigrou.Abdellatif Kechiche é o instigador de uma utopia, a de quebrar a distância entre filme e espectador. Sim, há algo de utópico nisto de dizer que os operários -personagens deste filme -poderem interessar às elites. E a utopia aconteceu com a terceira longa-metragem do realizador (depois de "La Faute à Voltaire" e de "A Esquiva").Não vamos esquecer: longas sequências à mesa, espectáculo de cuscuz e de grandes planos dos rostos, onde a família abre feridas e cicatriza a sua unidade; uma incrível experiência "ao vivo" -a tal barreira que se quebra entre o espectador e o ecrã. Grande cinema popular, memorável, de novo.V. C.
2. A Turma Laurent Cantet
Poder-se-ia dizer que era o filme certo na altura certa, face às convulsões da educação em Portugal, mas seria reduzir "A Turma" a uma topicalidade que transcende as suas intenções de mostrar a escola como reflexo da sociedade sem cair no cliché do "filme educacional". Missão cumprida em ambos os casos, através de uma ficção filmada como um documentário. J. M.
3. Este País Não é para Velhos Joel e Ethan Coen
Adaptando o romance de Cormac McCarthy, os irmãos Coen constroem um terrífico pesadelo americano, com violência e rigor inusitados: depois de "Fargo" é a sua mais obra mais pessoal e mais forte, apostando num sangrento jogo de massacre, espécie de divertimento letal em torno da morte sem razão, um "thriller" brutal cruzado com um "western" rarefeito. O predador à solta de Javier Bardem persegue-nos como onírica encarnação do Mal. M. J. T.
4. Austrália Baz Luhrmann
Como já fizera em "Romeu e Julieta" e "Moulin Rouge", Baz Luhrmann pulveriza as regras do cinema clássico e transforma os géneros em resquícios signifi cativos. O grande fôlego épico (pode falar-se de uma paródica a "E Tudo o Vento Levou" ou a "Gigante") dissolve-se numa estratégia pós-moderna de esvaziar os conteúdos melodramáticos e de reduzir as personagens a meros fantoches. E, no entanto, persiste uma comovente relação com a capacidade de o cinema transmitir emoções e de "arrepiar" o espectador incauto. M.J.T.
5. Gomorra Matteo Garrone
É tudo menos o filme de mafiosos romântico e épico: "Gomorra" é uma arrepiantemente desencantada polaroid em mosaico sobre os proletários do crime.Gente tão aprisionada no seu quotidiano banal como um qualquer bancário ou balconista, sonhando com uma saída que talvez não exista, assombrosamente filmada, sem ilusões mas com lealdade, por Matteo Garrone. J.M.
6. Quatro Noites com Anna Jerzy Skolimowski
O polaco Jerzy Skolimowski, depois de 17 anos sem filmar, voltou a esgrimir a sua obsessiva inocência, fazendo corpo com a personagem de um funcionário de crematório obcecado pela enfermeira que vive em frente. É o filme de um cineasta intacto - na disponibilidade para a obsessão. É um filme, como outros de Skolimowski, em que o desejo tem amputação agendada: o cinema, "idade de ouro", escapa-se-nos entre os dedos. V.C.
7. Nós controlamos a noiteJames Gray
A parábola do filho pródigo encenada entre as grandes famílias da polícia e da máfia novaiorquinas, em finais dos anos 80. Sem nunca "citar", Gray trabalha na pista - ou na "tradição" - deixada por outras grandes declinações do tema "família americana", do classicismo fordiano ao neo-classicismo coppoliano. Cheio de personalidade, cheio de estilo, mas silencioso e com horror a excessos: arte essencialmente discreta. L.M.O.
8. Aquele Querido Mês de AgostoMiguel Gomes
Até na Austrália (onde o influente crítico Adrian Martin acaba de o escolher como "melhor do ano") o seu poder funcionou. Há portanto algo mais, neste filme sobre Portugal e os portugueses, do que o reconhecimento de Portugal e dos portugueses. Há um cinema que se reinventa, se redescobre (e se devora) a cada plano, sonhando com grandes fórmulas e géneros clássicos (o documentário e o melodrama) a que chega tomando o caminho mais longo. Gosto do risco, espírito de aventura. L.M.O.
9. Darjeeling LimitedWes Anderson
O próximo filme de Wes Anderson será um desenho animado. É natural: talvez "Darjeeling Limited" seja o máximo ponto a que se pode levar a "cartoonização" e o burlesco sem que tudo se torne... "cartoon". Tudo almofadas para os sentimentos, o instrumento de um pudor: como sempre em Wes Anderson, é um filme lancinante. Viagem por uma Índia de cinema (a de Satyajit mas também a de Renoir), três irmãos à procura da mãe, laços de um sangue que ainda não parou de correr. L.M.O.
10. Antes que o Diabo Saiba que MorresteSidney Lumet
Lembrou-nos que o veterano Lumet, quando em "dia sim", pode ser um extraordinário cineasta. O filme-puzzle (assente em "flash-backs" ou "flash-forwards") tomado não como "desconstrução da narrativa" mas como decomposição das personagens e da sua unidade. Uma amargura sem fim, que não dá tréguas. Um grupo de actores (Seymour Hoffman, Finney, Ethan Hawke, Marisa Tomei) que foi o melhor "ensemble" do ano.L.M.O.