O Nosso Infinitivo
Por tudo o que por aí se lê, em prosa ou em verso, pode concluir-se que, na generalidade, se perdeu a noção de que, na nossa língua, há a particularidade, única no mundo literário, da existência de dois infinitivos.
Antigamente ensinava-se que havia dois infinitivos: o impessoal e o pessoal. Hoje, diz-se, de preferência: o infinitivo não flexionado e o flexionado. Uma terminologia que vai dar ao mesmo.
Claro que, o desconhecimento da existência dos dois e a confusão estabelecida no seu emprego já vêm de longe e têm dado origem a construções defeituosas e pouco aceitáveis. Mas não vamos além, para não nos alongarmos e tornarmos fastidioso este apontamento, motivado pela leitura de um “Guia da Língua Portuguesa”, em que iremos falar mais adiante.
Num velho “Compêndio de Gramática Portuguesa”, da Porto Editora, da autoria de José Nunes de Figueiredo e António Gomes Ferreira, sobre o uso destes dois infinitivos, podemos ler, na página 72, § 128: “A prática da língua, a clareza, a eufonia e a ênfase são os factores que decidem do emprego da forma pessoal ou impessoal do infinitivo”.
A “Nova Gramática do Português Contemporâneo”, de Celso Cunha e Lindley Cintra, edição de 1984, de João Sá da Costa, depois de uma longa dissertação sobre o uso dos dois infinitivos, com citações exemplificativas, acaba por concluir, na página 487: “Trata-se, pois, de um emprego selectivo, mais do terreno da estilística do que, propriamente, da gramática”.
Na 25ª edição do “Prontuário Ortográfico e Guia da Língua Portuguesa”, de Magnus Bergstrom e Neves Reis, da Editorial Notícias, podemos ler, na página 138: “[...] Conclusão: o emprego do infinito é caso de estilo, e não de gramática”. E mais abaixo: “Nas questões do infinito pessoal, muitas vezes costuma citar-se o verso da estância 72, do canto VII de “Os Lusíadas”: “E folgarás de veres a polícia”. “Há um erro de Camões, mas a anormalidade, conforme Cândido de Figueiredo (1) justifica-se pela liberdade poética”...A nota (1) remete para a “Linguagem de Camões”, página 70, desse autor.
Ora, a razão que nos levou à redacção deste apontamento, é não compreendermos como é que Camões cometeu um erro, quando todos os gramáticos chegam à conclusão de que, no uso do infinito, qualquer escritor tem a liberdade de proceder segundo a sua sensibilidade estilística. Sendo assim, por que temos de concordar que Camões tenha cometido um erro?
Diz a velha máxima que “errare humanum est”. Então, embora fosse um “mestre”, como é que Cândido de Figueiredo, sendo humano, não podia ter errado, ao declarar que havia um erro no citado verso de Camões?
Com o devido respeito, parece que ele errou mesmo. Vejamos:
Camões, ao compor esse verso, não precisava de se escudar na “liberdade poética”. A preposição “de”, embora humilde e pequenina, pode esconder várias conotações de sentido, sendo mais frequentes as de causa e as de tempo. E acontece que, no citado verso, ela se pode orgulhar de abarcar as duas ao mesmo tempo. Vamos ver.
Na citada estância 72 de “Os Lusíadas”, Monçaide aconselha o Catual a visitar a armada portuguesa, e garante-lhe: “E folgarás de veres a polícia...”. Isto é: (tu) hás-de folgar QUANDO vires a polícia. Ou então: (tu) hás-de folgar AO veres a polícia.
Poderá haver dúvida de que, neste “de”, está implícita a ideia de tempo, expressa pelo “quando” ou pelo “ao”?
Mas, em vez do “de”, o poeta não poderia ter usado um “por” (folgarás por veres a polícia)? Ora, se o tivesse feito, quem poderia duvidar de que o “de”, que empregou, não tinha implícita a ideia de causa?
Nesta ordem de ideias, vê-se, claramente, que o verso ficaria perfeito e sem perda de sentido nem de harmonia eufónica, com qualquer das seguintes redacções: “E folgarás AO veres a polícia”, ou “E folgarás POR veres a polícia”. Na primeira, como já vimos, teríamos a ideia de tempo; na segunda, a ideia de causa.
Ora, nestas circunstâncias, vê-se que, se o poeta tivesse empregado o infinito impessoal (E folgarás de VER a polícia) teria, então, cometido um erro, porque o sujeito “tu”, embora omisso, obriga a um “veres”, sem precisar de nenhuma regra de gramática. Além disso, o verso ficaria com menos uma sílaba e lá se ia um decassílabo perfeito, exigido pela métrica a que o poeta tinha de obedecer.
[27-06-2003] [ Jaime Umbelino ]