Sempre teve mão para duas escritas, a científica e a poética. Mas está longe de ser um homem dividido. Antes, multiplicado por diferentes formas de expressão. O poeta Boaventura de Sousa Santos tem publicado regularmente, sobretudo no Brasil
Maria Leonor Nunes e Luís Ricardo Duarte 15:14 Quarta feira, 19 de Jan de 2011 |
Boaventura de Sousa Santos José Carlos Carvalho |
O RAP é uma outra forma de dar voz às suas preocupações sociais e políticas?
Sim, é isso mesmo. O que nos leva à relação entre a escrita literária e a científica.
Como passa de uma para a outra?
Automaticamente. Estou a trabalhar cientificamente e ao lado vão surgindo coisas que aproveito para a escrita literária. O processo criativo é muito caótico, não há horários nem ideias estanques. Claro que a escrita literária é mais dúctil, pode acontecer em qualquer lado. A científica obriga a um certo aparato, trabalho de campo, computador, alguns livros, etc.
E há relações possíveis entre essas duas escritas?
Um dos meus interesses é a tradução intercultural, no entanto, entre as várias escritas da mesma pessoa, por exemplo, não me parece que seja possível a tradução. A escrita científica tem o seu cânone, embora aceite transgressões. E cada sociólogo tem a sua maneira de escrever, com transgressões dentro de um certo limite e uma conceção de racionalidade que de alguma maneira o coloca no exterior das coisas. No caso da escrita literária, ela também tem os seus cânones, mas distintos.
É mais livre?
A luz interna, a imaginação, a individualidade e a subjetividade são constitutivas da criação e podem transformar um singular num singular concreto, segundo Hegel, isto é, num verdadeiro universal. Um Josef K. pode ser a experiência de um indivíduo mas é também a experiência de uma modernidade europeia no início do sec. XX. A escrita literária tem um registo que dá outra liberdade.
E o que o levou a escrever o seu Rap Global?
É tudo aquilo que não posso dizer cientificamente sobre a modernidade ocidental, a partir de uma perspetiva pós-colonial. Mas posso dizê-lo literariamente. Há uma série de paralelos entre a Gramática do Tempo, sobretudo nos capítulos sobre o pós-colonialismo, e o Queni N.S.L. Oeste [o pseudónimo usado no livro]. São coisas e formas de dizer blasfemas em relação às tradições ocidentais, de Nietzsche a Celan, que eu distorço ludicamente. Conheço bem a tradição ocidental e viro-a por dentro, contra si. O Nietzsche aparece como o criador de gado bravo de Salvaterra para produzir um efeito de desfamiliarização e de refamiliarização já que o touro vira o Untermensch que por vezes vence o Ubermensch.. Como é que poderia pôr isso num artigo científico? Por isso, usei este artifício que os brasileiros levaram a sério. Na ficha técnica do livro nem aparece o meu nome.
Quem é o rapper que criou?
É o aportuguesamento do grande rapper americano Kanye West, um dos meus grandes ídolos, a par de Jay-Z. Espero que ele não se chateie. Transformei-o num filho de um retornado a viver no Barreiro, a personagem d'A Casa do Rio, do Manuel Rui, grande escritor angolano e grande amigo meu, fomos colegas aqui em Coimbra.
O livro vai ser publicado em Portugal?
Já o mostrei à minha editora, a Afrontamento, e eles ficaram desconcertados. Mas disseram-me que vão publicá-lo. É muito transgressivo. O que tenho preparado agora para sair no Brasil, onde normalmente publico, é outro livro de poemas.
Porquê sempre no Brasil?
Sou mais bem recebido. Aqui é o silêncio.
Sofre da síndrome do Chico Buarque, que por ser bom músico não pode ser bom escritor?
Exatamente. E prejudica-me publicar livros de poesia. Muitos colegas acham que é um embaraço, um cientista social ser também poeta. Mas o que é transgressivo na modernidade ocidental tem de ser marginal. Como digo em A Crítica da Razão Indolente, uma das grandes revoluções da emancipação é pela estética. Penso que hoje temos de ir pelas representações menos poluídas da modernidade. E a arte e a estética foram as menos colonizadas, aquelas a que se deu mais liberdade. O rap acaba por ser a possibilidade de me dar uma dimensão estética e ao mesmo tempo política.
Que não aparece na sua poesia?
Nunca fui capaz de fazer poesia política ou de combate. Pelo contrário, na poesia não procuro nada disso. Sou muito influenciado por Herberto Helder, Ramos Rosa ou Alberto Pimenta, o grande poeta esquecido. Mas tudo o que sai do cânone poético português não é divulgado. E depois ninguém é capaz de imaginar que um cientista social seja um poeta razoável. Toleram-me, pelo silêncio.
Vai publicar algum livro de poesia?
Estou a terminar Falta de Ar em Plena Estação, um livro com dois autorretratos, um deles baseado numa obra do Pedro Cabrita Reis, e um longo poema chamado "Mãe". Tem um caráter mais autobiográfico. Mais tarde sairá um livro de poesia erótica que se vai chamar Volume 8, porque o projeto de investigação da emancipação social teve sete volumes.
O projeto Alice vai dar um bom livro de poemas?
Se o processo criativo continuar. O trabalho burocrático é que mata a poesia. Os livros científicos não faltarão, escritos pelos colaboradores que vou contratar e algum por mim próprio.