Elías Serra: Materia de Brasil. La era de Lula vista y vivida por
un español curioso y un poco impertinente.
Alzira, Algar, 2012, 323 p.
Para eu aproximar o leitor a este livro, devo dizer
que tem o feitio de um travelogue ou
diário de viagem, para além de um uademecum
ou manual para o leitor interessado no Brasil.
O autor (Albacete, 1945), professor de literatura,
descreve e comenta, num castelhano florido com ecos da literatura espanhola do
Século de Ouro, facetas do Brasil do presidente Lula (2003-2010). Neste
período, o autor trabalhou como agregado cultural da embaixada da Espanha no Brasil,
país onde ainda mora.
O livro organiza-se em sete capítulos
descabeçados, cada um subdividido em quatro leitmotive: Lula, Salvador (de Bahia, a cidade fulcral laboral do
autor), Geografias e Fábulas domésticas. O capítulo oitavo é uma coda, seguido
de uma bibliografia e um glossário cultural.
Ainda que baseado no nordeste brasileiro, o autor
percorre quase todo o país e introduz-nos na história, cultura e música,
incluindo conceitos básicos para compreender o Brasil popular, tão afastado do
país oficial, p.e. povão, caboclo, caipira, capoeira, fazenda, sertão, favela, garimpeiro,
seringueiro, camelô, catador de lixo, grileiro, doleiro, bicheiro, flanelinha,
torcida, cachaça, perereca (modelo de manipulação idiossincrásica do poder via
uma perversa reductio ad ridiculum)…
A 'impertinência' do autor é de facto uma
apresentação verídica que parte do 'Pare, escute e olhe' (p.9) das passagens de
nível sem barreira dos caminhos-de-ferro portugueses, um contínuo 'dizer a
realidade' (Ll.V. Aracil) do Brasil acima de lugares comuns e miragens, com
ênfase em personagens preocupadas com o Brasil presente e o seu futuro
sustentável mais do que com demagógicos desenvolvimentos milagreiros do jeito
das bolhas do lobby parlamentar, tão conhecidas do 'primeiro mundo' (cf. p.135).
Entre estas personagens destacam os emblemáticos Chico Mendes -assasinado- e
Marina Silva.
Os comentários alternam-se com lembranças-postais
da Espanha da pós-guerra civil, principalmente a do cenário natal manchego do
autor, com alusões a outras partes do seu percurso profissional peninsular,
p.e. ''Você vai ao coração da África e vê que as suas danças são as mesmas que
as de Algemesí, paus e ameaças de mais sem chegar a bater" (p.220, minha
tradução), ''Fortaleza, o paradisíaco
litoral (…) a cidade com um calçadão marítimo em frente de um paredão de prédios
altíssimos, todos veraneantes, que nada têm que invejar a Cullera, por exemplo" (p.244, minha tradução).
Às vezes as descrições lembram o leitor dos
peculiares noticiários brasileiros populistas (p.e. do Fala Brasil da TV
Record), cheios de histórias criminosas distraidoras e inibidoras de uma visão
social crítica para uma ação coerente e justa.
O autor observa na sociedade brasileira o seu jeitinho optimista (quase cósmico
leibniziano), ultra-religioso, sentimental e lacrimófilo, num Brasil que ele
adora e, por isso, também comenta criticamente no desejo férvido que o 'país
emergente' também emerja na educação, nos serviços públicos e sociais, etc.
Fica todo o variado conteúdo do livro por conhecer.
Agora, vá o leitor mas é ler e, se estiver muito impaciente e interessado,
comece com os subcapítulos Lula: La
Perereca, sobre o microcosmo sociopolítico brasileiro, e Salvador: Cervantes, de cara a la pared
sobre a ação cultural da Espanha naquele microcosmo. Você não vai se
arrepender!